sexta-feira, 20 de março de 2009

Transfiguração e Ancestralidade


A formação do povo brasileiro foi marcada constantemente por situações de conflitos. A reflexão sobre esta formação está na nossa ancestralidade. Surgimos como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Esta nossa singularidade nos condena a nos inventarmos a nós mesmos, desafiados a construir uma sociedade inspirada na propensão indígena para o convívio cordial e para a reciprocidade e na alteridade saudável do negro extremamente alegre. Como mestiços "na carne e no espírito" temos o desafio de firmar nosso potencial, nossos modos distintos entre todos os povos. Devemos forjar um verdadeiro conceito de povo que englobe a todos sem distinção, em todos os direitos que devem assistir a cada cidadão brasileiro. Refazer os caminhos que levaram o Brasil a distâncias sociais tão profundas no processo de formação nacional e a partir daí reinventar o humano, com propriedades diferentes, mais solidárias e fraternas. A transfiguração étnica do povo brasileiro engloba: A inclusão do negro como principal elemento da nossa formação social, política e econômica; a violência como fator acelerador do desaparecimento e da transformação de etnias tribais através da política indigenista “etnocida” e em muitos casos genocida do governo brasileiro. Transfigurar-se em representações, articular um ponto de vista, uma atitude, apresentar um “material bruto” para que possa ser interpretado como uma ferramenta na compreensão da formação, da identidade e da realidade sócio-política do país. Transfigurar-se, tal como os povos indígenas, tal como os povos que formam o Brasil.

Roteiro Bruto "O fim do homem cordial"


Ext. Praia – dia

Um homem caminha, com os braços abertos, pela areia da praia gritando euforicamente. A imagem é desfocada, estourada e com muito ruído.

Homem

Ó meio-dia da vida! Tempo festivo! Ó jardim de verão! Inquieta ventura em se deter atentar e esperar! Ó meio-dia da vida! Tempo festivo! Tempo festivo!
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Int. estudio – dia

A Vinheta da Rede Bahia, acompanhada pela vinheta do Bahia Meio-dia e pela trilha sonora original entram no ar. A câmera desce em traveling vertical até enquadrar Casemiro Neto no plano médio.

Casimiro
Boa tarde! A Bahia está chocada! Após cinco longos dias de agonia, o grupo intitulado SUB v2.7 divulgou pela internet imagens do senador Antonio Carlos Magalhães, que está sob o poder dos terroristas.

Int. quarto – dia

Uma imagem com interferências, baixa resolução e ruídos é exibida. Em um quarto bastante deteriorado, com as paredes descascadas onde se vê uma inscrição: “SUB v2.7” em vermelho, três homens e uma mulher estão de pé e lado a lado. Com camisas enroladas na cabeça, bermudas de surf, batidões, sandálias de dedo, e óculos escuros, os quatro, com armas em punho e na cintura olham fixamente para a câmera. No chão, ajoelhado, com os punhos amarrados e a cabeça baixa está o senador ACM.

Seqüestrador 01
Possa crê meu primo, o coroa tá aqui!
Cole merma! Cês tão pensando o quê, mermão? Que agente ia ficar de pião na parada pá sempre, suas disgraça? tá por fora!

Sequetrador 02
Oi veí, a gente não tem nada a perdê não Véi, nós não tá aqui de viagem não meu primo!

Sequestrador 01
E ai meu pai, seus barão de merda, tudo na curtição, pá, na cocó e os sacizero correndo atrás? Quem é que ta no comandando da parada agora? No caminho certo uma porra! Tá no caminho certo é?

O seqüestrador 01 olha para o senador e volta o olhar para câmera.

Seqüestrador 01
Acabô essa onda de cabeça branca mermão, de painho, não tem mais porra nenhuma! Não adianta mais bota trio na parada não véi, o bicho tá pegano.

sequestrador 02
É o buzú, é as corda, os home dando na galera de graça, tá por demais, agente é otário é véi! Vai fica nessa? E o real? Tudo na mão dos coroa. Acabô essa embarreração de cordial, o miseravão tá aqui e o bicho vai pegá!

Seqüestrador 01
Cabo negão! O coroa tá na mão! Vai dá merda vú!

Seqüestrador pisa nas costas de ACM.

Seqüestrador 01
Oi vei eu não como nada de ninguém não! nos não qué tê ninguém pela gente não negão! Nós que fazer acontecer. É a idéia cheque.

Sequestrador 02
É mô pai, a cabeça branca vai rolar!


Sequestrador 03
Vou me saí e vô dá a idéia: só tem bicho solto, cabô.

Interferências na imagem e ela some.


Creditos finais

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Enquanto aparecem na tela os créditos finais do vídeo, ouve-se vozes em off de pessoas conversando e interpretando diálogos do roteiro original. Esses diálogos são trechos que poderiam ter sido utilizados pelos personagens e que serão ditos pelos realizadores do vídeo como se discutissem uma idéia. Risos, comentários e improvisações serão compostas com imagens dos própios seqüestradores “testando” a câmera antes do seqüestro.

Seqüestrador 03 (por davi)
Pur mim não intrega essa disgraça pur dinhêro ninhum no mundo! Qui o qui ele me tirô, dinhêro ninhum não paga! Essa disgraça não pode me dá o que eu quero não! Justiça!

Seqüestrador 04 (por andrigo)
Essa injura miricia morrer nera uma vez só não! Pur mim ele murria era divagarin, que era pra pagá as disgraça qui ele causô a nóis tudo!

Seqüestrador 03 (por davi)
Ele miricia era qui nóis arrancava as tripa, furava uzói, quebrava uzovo dele... Sangue pede é sangue...

Seqüestrador 04 (por edgar)
Pinicava o corpo todo de faca, dava uma surra de cansansão, mitia uma porra bem grande no cu desse corno véi!

Seqüestrador 03 (por daniel)
Mitia era azeite de dendê ferveno no fiofó dele, com um funil... Ele não diz qui adora a Bahia? Vamo vê se ele gosta tanto assim!...

Seqüestrador 04 (por davi)
Tanta gente qui não morreu pur causo dessa infilicidade!


Seqüestrador 03 (por edgar)
Essa carniça!... Qui isso é uma carniça, qui não serve mais nem pruzurubu cumê! Qui isso deve dá é indigestão nos bicho, de tão invenenado qui tá isso!

Seqüestrador 03 (por andrigo)
Invenenado de ruindade!

Seqüestrador 03 (por edgar)
Não diz qui esse puto fez uma operação, botô um pedaço dum coração de boi lá nele, no coração dele?

Seqüestrador 03 (por davi)
Deve tê ficado é com o coração mais runhe ainda!

Seqüestrador 03 (por daniel)
E o coração do fí? Ele não arrancou o coração do fí, depois de morto!?

Seqüestrador 03 (por davi)
Diz que ele é fí de Exu, o dono da rua.

Seqüestrador 03 (por andrigo)
Aquilo tem parte é com o cão. O cão satanás.

Seqüestrador 03 (por daniel)
Cês tão pensano o quê? Que a gente vai ficá isperano de boresta, seus puto??? A gente não tem mais nada a perder!

Ficha técnica:
Direção -- Daniel Lisboa
Roteiro -- Daniel Lisboa, Davi Cavalcante e Andrigo de Lázaro
Fotografia -- Pedro Leo
Edição -- Daniel Lisboa
Produção -- Daniel Lisboa e Davi Cavalcante
Elenco --Ângelo Flavio, Fernando Neves, Diego Lisboa, Luana Serrat, Bimbinho e Marcão.
Direção de arte -- Davi Cavalcante e Flavio Lopes
Som direto -- Andrigo de Lázaro
Still -- Murilo Figueiredo
Seleções:
• IX Festival nacional de vídeo -- Imagem em 5 minutos
• 3° Festival Sul-Americano do Audiovisual Universitário -- NÓIA
• 1º Panorama Latino-Americano de Cinema Universitário• Mostra do Filme Livre 2005
• 12° Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá
• XV Festival Cine Ceara
• 10° Festival Brasileiro de Cinema Universitário
• 15° Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil
• 16º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo
• Mostra do Audiovisual Paulista 2005• Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro - Curta Cinema 2005
• I Festival de Cinema e Vídeo Universitário do MEC
• 10º CINEPE Festival do Audiovisual
• 6º BrasilNoar - Barcelona 2006 • Cine Esquema Novo 2006
• 8º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte
• 13 º Vitória Cine Vídeo
Prêmios:
• Troféu Geraldo Del Rey - Melhor Vídeo no IX Festival nacional de vídeo -- Imagem em 5 minutos
• "Prêmio Novos Vetores" no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil
• "Menção honrosa" pela força da obra no Festival Internacional de Curtas de São Paulo concedida pelo Cachaça Cine Clube
• 2º Lugar no I Festival de Cinema e Vídeo Universitário do MEC
• Prêmio Especial do Júri -- Melhor Vídeo Nordestino no 10º Cine PE Festival do Audiovisual

Manderlay


Dando continuidade ao seu teatro filmado, ou cinema total, como queiram chamar, o diretor dinamarquês, Lars Von Trier, realizou a segunda parte da sua inacabada trilogia: “América, país das possibilidades”, iniciada com “Dogville”. O título do novo episódio é “Manderlay”, que assim como em “Dogville”, é também o nome do local onde ocorrem os acontecimentos narrados. Como na primeira parte, a narrativa é dividida em capítulos, indicados à medida que a trama vai se desenrolando.
A proposta estético-formal desse novo filme é a mesma de “Dogville”, uma espécie de teatro filmado, ou cinema teatral, em que o autor utiliza poucos elementos de cena como se estivesse a filmar uma peça. Os cenários, como no teatro, são esboços dos espaços físicos reais e juntos formam um grande círculo de cena. É onde se passa a ação dos personagens. Ao lado de cada locação, marcações escritas com seus respectivos nomes, que conseguimos ver a partir da utilização da câmera posicionada de cima para baixo, no alto desse grande palco. A utilização do espaço e de seus personagens de forma nova e anticonvencional faz com que o espectador sinta-se curioso a participar do universo da trama e a aceitar as suas convenções, como num espetáculo teatral. A iluminação se configura a partir da combinação de claro e escuro, sem muitos efeitos, utilizando basicamente luz difusora, amarela, com mais ou menos intensidade. A música esta presente basicamente em três momentos: nas cenas onde é exigida uma tensão dramática mais acentuada, como no início quando um dos personagens está para ser chicoteado, ouvimos um tema erudito; nas seqüências em que Grace sonha com Timothy, ouvimos uma flauta indiana e tambores orientais; e no final com os créditos, que prefiro não revelar o conteúdo por se trata de um dos pontos altos do filme. A voz off que ouvimos narrar partes e intervalos importantes da história contribui para dar o tom brechtiano, distanciado e crítico em forma de comentário narrativo.
As atuações são convincentes, mesmo sendo um teatro filmado, o desempenho dos atores está mais próximo do realismo cinematográfico do que da linguagem teatral, que muitas vezes utiliza-se de uma interpretação mais exacerbada. A técnica de câmera continua surpreendente, toda feita a mão, nos moldes do Dogma 95, não sei as apontadas do teto para baixo. Segura, sempre a serviço dos atores e da narrativa. A montagem segue a mesma construção da fotografia, artesanal e suficiente, sem exageros nem apuros, só sentimento e um tempo de corte sensível e original.
Comprometido com um cinema de invenção, Lars Von Trier opera a transcendência das linguagens e nos oferece uma experiência essencial, um cinema novo, apesar de beber das velhas fontes já conhecidas e conduzir de forma competente uma espécie de narrativa clássica, entendendo-a no sentido aristotélico do termo.
A nova atriz que interpreta a protagonista Grace, Boyce Dallas Howard substitui Nicole Kidman sem comprometer. Segue a linha frágil e ingênua da estrela roliudiana. Além dela, temos mais uma novidade, a presença do ator Danny Glover, o único ator negro americano a topar a empreitada.
A história de “Manderlay” é uma seqüência dos fatos acontecidos em Dogville. Grace a personagem principal, após ter sido salva dos perigos que a cercaram na vila dos cães, chega agora a Manderlay, uma fazenda de escravos dominada por uma família de brancos. Resolve intervir nas relações sociais e humanas ali existentes, na tentativa de resolver um equivoco histórico. Utilizando-se da presença armada dos capangas de seu pai, instaura um regime totalitário, passando a administrar a relação entre os escravos, e desses com a propriedade e com seus antigos donos. O que vemos a partir daí são as conseqüências de uma postura idealista, liberal democrática adotada por Grace, uma branca, filha de Gângster, tomada por um sentimento de solidariedade atípico em pessoas de sua classe, entrando em conflito com a realidade dos fatos: as profundas marcas do que foi e ainda é a desumana escravidão negra no continente americano. Como uma idealista americana típica, Grace estabelece um sistema de votação para a resolução dos problemas internos da comunidade de Manderlay. No entanto, acaba reproduzindo na prática a mesma lógica liberal protestante das cidades americanas recém colonizadas, que depois da abolição substituíram a escravidão pela noção de trabalho coletivo assalariado.
A forma como é abordada a questão racial no filme, lança o espectador na direção de outros temas complexos, inerentes à condição humana, como à relação entre escravidão e liberdade, submissão e poder. Além de revelar as incertezas e a crueldade existente no convívio entre os personagens, a história traça um panorama psicológico rigoroso dos mesmos, como no livro “As Leis da Senhora”, presente no filme, onde cada escravo é enquadrado num determinado perfil de comportamento e em categorias como “adaptáveis”, “orgulhosos”, “bufões” e etc. Um instrumento de manutenção da “ordem”, a serviço do controle e da opressão, diante das “incertezas” do fim da escravidão.
A ironia e a provocação continuam presentes na demolição de certos tabus e na forma antidialética de tratar temas polêmicos. Entre eles a exploração dos pobres pelos ricos e as relações inter-raciais e de subserviência entre negros e brancos.
O resultado de toda essa investida é um filme conceitual, reflexivo e instigante, que faz o espectador pensar e questionar. Duvidar da visão arbitrária dos fatos históricos, que se impõe com o discurso dos vencedores. Mesmo diante da brutalidade revelada pela condição desumana dos “derrotados”.
“Manderlay” é forte e necessário como “Dogville”. Põem em pauta velhos assuntos que continuam encobertos pela névoa do medo e da mediocridade. Vida longa a Lars Von Trier e até a terceira parte.

Mito Nagô


No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos. Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu dos Orixás fora então maculado. O branco imaculado de Obatalá se perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor Supremo, irado com o acontecido soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.
O mundo dos homens foi separado do mundo dos orixás. Isoladas dos habitantes do Aiê, as divindades se entristeceram. Amuados foram queixar-se a Olodumare, que acabou consentindo que pudessem vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar um corpo material. Diante disso Oxum recebeu de Olorum um encargo: preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás. Oxum fez oferendas a Exu para que lhe abrisse os caminhos. Veio então Oxum ao Aiê e juntando à sua volta algumas mulheres, banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas cabeças. Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços, enfeitou-as com jóias e coroas O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas e múltiplas fieiras de búzios. Finalmente as esposas estavam feitas, estavam odara. Os orixás agora podiam retornar com segurança ao Aiê.
Desse dia em diante os humanos fizeram oferendas aos orixás, convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs. Os orixás estavam felizes. Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e cantavam. Estavam inventando o candomblé.

O Matriarcado Afroíndio


“Sagrado é o corpo do homem
como sagrado é o corpo da mulher,
sagrado – não importa de quem seja.
É o mais humilde numa turma de operários?
É um dos imigrantes de face turva
apenas desembarcados no cais?
São todos daqui ou de qualquer parte,
da mesma forma que os bens situados,
da mesma forma que qualquer um de vocês:
cada qual há de ter na procissão
o lugar dele ou dela.
Tudo é procissão,
todo o universo é uma procissão
em movimento medido e perfeito.” (Os filhos de Adão; Walt Whitman).
O Deus judeu que recriou o mundo à imagem do macho nos legou a idéia de pecado, relacionando-o à idéia de ruptura com a ordem divina, ao apelo ao arrependimento e à regeneração do ser interior através da confissão. Adão e Eva são filhos da sociedade patriarcal nascida com a guerra, que relegou a mulher a um papel secundário na história da humanidade. Expulsos do paraíso, eles permanecerão juntos não pelo amor ou pelo desejo, mas pelo sacrifício e sofrimento de seu pecado original – o conhecimento do amor. Amor que se confunde com o humanismo tradicional, símbolo da boa consciência dominadora. Sua característica básica é a submissão: Eva deve se submeter ao marido e este à autoridade. Amor e pecado formarão para sempre um laço de medo, temor, traição, castigo e martírios. Os judeus descobriram desde cedo que o amor natural é um feroz inimigo do poder e da autoridade. Desta forma o amor sempre fora associado ao pecado, pela tradição judaico-cristã.
A iluminação espiritual na direção do matriarcado Afro-índio nos revela a apreciação dos mitos originais da nossa raça e nos distancia dos antigos colonizadores ibéricos que trouxeram a bandeira da igreja ao lado da suprema vontade de dilatar o império. O pecado antes da invasão da “boa consciência do colonizador” era para nós no máximo a violação de um tabu ou a falta a uma regra de culto. A idéia de pecado fundada pela razão conservadora é essencialmente o pecado contra a ordem, um erro do juízo e do gosto. A doutrina calvinista coloca o perdão dos pecados, a reconciliação, a justiça e a santificação como uma decisão de Deus tomada desde toda a eternidade. Lutero sustentava que o pecado era constitutivo da natureza humana, da sua essência desde o momento da concepção, independente das palavras, das obras e, conseqüentemente, de toda a vida.
O homem natural vivendo num matriarcado é diferente do homem civilizado, fundador da concepção de pecado fortemente marcada pelo pensamento judaico-cristão associado ao mal-estar perante a revelação da desventura do mundo, perante a impotência contra a burocracia e a tecnocracia. A compreensão do pecado baseada na utopia “liberadora da irrealidade” (Glauber Rocha; Eztética do Sonho; Nova York, 1971), revela que a humildade do homem já não pode ser humilhação, medo e alienação. A possibilidade de redenção pelo excesso de pecado é uma metáfora barroca da incorporação do prazer à vida. O mito do povo verbal, falante, enérgico, anárquico e místico, com muito ritmo e erotismo. A utopia subversiva sugerida pelo mito, mediada pela liberação anárquica que é o matriarcado antropofágico, diante de uma realidade violenta, sádica e masoquista, da crueza, da corrosão dos valores, da invenção delirante da castidade para negar o próprio corpo: “Para conhecer a santidade será preciso conhecer o pecado”. A verdadeira força “religiosa” está num comportamento emocional dionisíaco, resultado da mistura entre o catolicismo sincrético e as religiões africanas. A energia que tem a sua origem no misticismo, que libertará da opressão e da crise moral do pecado. O “pecado” proclamado pelas novas igrejas protestantes; combatido e denunciado pelos formadores de opinião e da consciência alheia. O “pecado” vivenciado em toda a sua urgência pela razão da ordem e do desenvolvimento e, sobretudo, o “Pecado” que nega a violência em nome de uma comunidade fundada pelo sentido do amor ilimitado entre os homens. “Os Deuses Afro-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos.”(Glauber Rocha; Eztética do Sonho; Nova York, 1971). Como disse também Borges: “Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até mesmo a perpetuidade de um inferno, porém acredito também que é uma irreligiosidade crer nele”.

A RELIGIÃO NA CONVIVÊNCIA HUMANA

HORDA – Religião vista como “pânico místico”.
TRIBO – Religião como origem da cerimônia ritual.
SISTEMA TOTÊMICO – Religião como origem do ascetismo religioso e da restrição sexual.
FAMÍLIA – Religião como reforço do ascetismo. Consagração religiosa do matrimônio, opressão e interiorização do super ego.
ESTADO – Secularização. Consagração civil do matrimônio.
CENTRO CÍCLICO DE PODER – Religião como fenômeno político.
UTOPIA - Religião como Transcendência.