sexta-feira, 20 de março de 2009

Manderlay


Dando continuidade ao seu teatro filmado, ou cinema total, como queiram chamar, o diretor dinamarquês, Lars Von Trier, realizou a segunda parte da sua inacabada trilogia: “América, país das possibilidades”, iniciada com “Dogville”. O título do novo episódio é “Manderlay”, que assim como em “Dogville”, é também o nome do local onde ocorrem os acontecimentos narrados. Como na primeira parte, a narrativa é dividida em capítulos, indicados à medida que a trama vai se desenrolando.
A proposta estético-formal desse novo filme é a mesma de “Dogville”, uma espécie de teatro filmado, ou cinema teatral, em que o autor utiliza poucos elementos de cena como se estivesse a filmar uma peça. Os cenários, como no teatro, são esboços dos espaços físicos reais e juntos formam um grande círculo de cena. É onde se passa a ação dos personagens. Ao lado de cada locação, marcações escritas com seus respectivos nomes, que conseguimos ver a partir da utilização da câmera posicionada de cima para baixo, no alto desse grande palco. A utilização do espaço e de seus personagens de forma nova e anticonvencional faz com que o espectador sinta-se curioso a participar do universo da trama e a aceitar as suas convenções, como num espetáculo teatral. A iluminação se configura a partir da combinação de claro e escuro, sem muitos efeitos, utilizando basicamente luz difusora, amarela, com mais ou menos intensidade. A música esta presente basicamente em três momentos: nas cenas onde é exigida uma tensão dramática mais acentuada, como no início quando um dos personagens está para ser chicoteado, ouvimos um tema erudito; nas seqüências em que Grace sonha com Timothy, ouvimos uma flauta indiana e tambores orientais; e no final com os créditos, que prefiro não revelar o conteúdo por se trata de um dos pontos altos do filme. A voz off que ouvimos narrar partes e intervalos importantes da história contribui para dar o tom brechtiano, distanciado e crítico em forma de comentário narrativo.
As atuações são convincentes, mesmo sendo um teatro filmado, o desempenho dos atores está mais próximo do realismo cinematográfico do que da linguagem teatral, que muitas vezes utiliza-se de uma interpretação mais exacerbada. A técnica de câmera continua surpreendente, toda feita a mão, nos moldes do Dogma 95, não sei as apontadas do teto para baixo. Segura, sempre a serviço dos atores e da narrativa. A montagem segue a mesma construção da fotografia, artesanal e suficiente, sem exageros nem apuros, só sentimento e um tempo de corte sensível e original.
Comprometido com um cinema de invenção, Lars Von Trier opera a transcendência das linguagens e nos oferece uma experiência essencial, um cinema novo, apesar de beber das velhas fontes já conhecidas e conduzir de forma competente uma espécie de narrativa clássica, entendendo-a no sentido aristotélico do termo.
A nova atriz que interpreta a protagonista Grace, Boyce Dallas Howard substitui Nicole Kidman sem comprometer. Segue a linha frágil e ingênua da estrela roliudiana. Além dela, temos mais uma novidade, a presença do ator Danny Glover, o único ator negro americano a topar a empreitada.
A história de “Manderlay” é uma seqüência dos fatos acontecidos em Dogville. Grace a personagem principal, após ter sido salva dos perigos que a cercaram na vila dos cães, chega agora a Manderlay, uma fazenda de escravos dominada por uma família de brancos. Resolve intervir nas relações sociais e humanas ali existentes, na tentativa de resolver um equivoco histórico. Utilizando-se da presença armada dos capangas de seu pai, instaura um regime totalitário, passando a administrar a relação entre os escravos, e desses com a propriedade e com seus antigos donos. O que vemos a partir daí são as conseqüências de uma postura idealista, liberal democrática adotada por Grace, uma branca, filha de Gângster, tomada por um sentimento de solidariedade atípico em pessoas de sua classe, entrando em conflito com a realidade dos fatos: as profundas marcas do que foi e ainda é a desumana escravidão negra no continente americano. Como uma idealista americana típica, Grace estabelece um sistema de votação para a resolução dos problemas internos da comunidade de Manderlay. No entanto, acaba reproduzindo na prática a mesma lógica liberal protestante das cidades americanas recém colonizadas, que depois da abolição substituíram a escravidão pela noção de trabalho coletivo assalariado.
A forma como é abordada a questão racial no filme, lança o espectador na direção de outros temas complexos, inerentes à condição humana, como à relação entre escravidão e liberdade, submissão e poder. Além de revelar as incertezas e a crueldade existente no convívio entre os personagens, a história traça um panorama psicológico rigoroso dos mesmos, como no livro “As Leis da Senhora”, presente no filme, onde cada escravo é enquadrado num determinado perfil de comportamento e em categorias como “adaptáveis”, “orgulhosos”, “bufões” e etc. Um instrumento de manutenção da “ordem”, a serviço do controle e da opressão, diante das “incertezas” do fim da escravidão.
A ironia e a provocação continuam presentes na demolição de certos tabus e na forma antidialética de tratar temas polêmicos. Entre eles a exploração dos pobres pelos ricos e as relações inter-raciais e de subserviência entre negros e brancos.
O resultado de toda essa investida é um filme conceitual, reflexivo e instigante, que faz o espectador pensar e questionar. Duvidar da visão arbitrária dos fatos históricos, que se impõe com o discurso dos vencedores. Mesmo diante da brutalidade revelada pela condição desumana dos “derrotados”.
“Manderlay” é forte e necessário como “Dogville”. Põem em pauta velhos assuntos que continuam encobertos pela névoa do medo e da mediocridade. Vida longa a Lars Von Trier e até a terceira parte.

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