segunda-feira, 20 de abril de 2009

Genocídio negro como política de estado


Em Salvador/BA, governo do estado e prefeitura acobertam e incentivam assassinatos de jovens negros da periferia. Entre janeiro e setembro de 2008, 1450 pessoas foram mortas pela polícia baiana; a maioria jovem, pobre e afrodescendente.


"Ninguém se comove quando o corpo que está no chão é negro. Corpo negro no chão não gera comoção em ninguém". Com esse desabafo, Lio N'Zumbi,integrante da Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas da Bahia (Asfap-BA) e do Movimento Reaja ou Será Mort@, resumiu o sentimento da população pobre e negra da Bahia frente à violência policial. O assunto foi tema da segunda sessão do Tribunal Popular, realizada no dia 4 de dezembro, em São Paulo, e que tratou da perseguição e do extermínio da juventude negra no Estado.
N'Zumbi, que foi o acusador da sessão, relatou que, sob o argumento de disputas entre traficantes, centenas de jovens são executados nas periferias baianas, a maioria com o mesmo perfil: jovens negros, entre 15 e 29 anos, com baixa escolaridade. Para ele, no entanto, o que ocorre é um verdadeiro extermínio, posto em prática por policiais e, de forma crescente, por grupos paramilitares: "Existe uma pena de morte que não está na nossa Constituição, mas que na prática existe, executada por agentes do Estado".
De acordo com dados da Asfap-BA, entre janeiro e setembro de 2007, 660 pessoas foram assassinadas pela polícia. No mesmo período de 2008, esse número dobrou, passando para 1450 mortos. A maioria das vítimas, segundo a Associação, nem mesmo tinha antecedentes criminais.
A violência, conforme os depoimentos das vítimas, tornou-se mais visível no ano passado, quando voltou a funcionar a Polícia da Caatinga (também chamada de Polícia do Sertão). Essa força, que perseguia o bando de Lampião na Caatinga nordestina, tem como lema "Pai faz, mãe cria e a polícia do sertão mata", frase que, inclusive, está estampada em suas viaturas.
Sistema carcerário
A sessão também abordou as más condições do sistema carcerário baiano, com ênfase na colônia penal Simões Filho. Além de ter sido construída em área de quilombo, o que é ilegal, a unidade localiza-se a menos de 400 metros de alguns dutos de produtos químicos do Pólo Petroquímico de Camaçari, que liberam gases tóxicos.
De acordo com um relatório lido por estudantes de Direito da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), são indignas as condições dos presos, que não têm acesso a sistema de saúde e alimentação adequada. Em conseqüência disso, eles morrem de doenças que, hoje, são facilmente evitáveis, como tuberculose e diarréia.
Além de torturas sistemáticas e humilhações, inclusive contra familiares, o relatório alerta para a retaliação sofrida pelos internos, por meio de espancamentos e transferência para presídios de segurança máxima. Segundo parentes dos presos, já circulava na Bahia a informação de que, em represália à participação de mulheres de detentos no Tribunal Popular, vários deles seriam transferidos para unidades mais severas.
Ações concretas
Para N'Zumbi, o Tribunal conseguiu dar voz àqueles que, historicamente, são obrigados a se manter calados. "Viemos como acusadores, mas também como testemunhas e potenciais vítimas. A cor da nossa pele que define isso", destaca.
A opinião é compartilhada pelo também integrante da Asfap-BA, Hamilton Borges, que avalia que o Tribunal alcançou sua meta: "Cumprimos o objetivo de mostrar a situação de violência na Bahia. E os fatos não foram revelados por pesquisadores ou pessoas que estudam a violência, e sim por pessoas diretamente expostas a ela", avalia.
Borges também explica que, além da punição moral, as entidades estão discutindo ações concretas contra o Estado, em parceria com os pesquisadores e juristas que compareceram ao julgamento, a fim de que as denúncias não caiam no esquecimento. "Não se pode esquecer dessas pessoas, são vidas de pessoas que estão jogadas aqui, tem que fazer alguma coisa concreta, deve-se buscar reparação para essas pessoas aqui expostas".
Relato de um sobrevivente
A violência contra K.A. deixou marcas bem maiores do que somente uma lembrança ruim. No seu corpo, ainda se alojam duas balas, uma delas na medula, que pode deixá-lo tetraplégico.
K.A.foi baleado em março do ano passado. Junto com ele estava C.S.S., seu companheiro de movimento hip-hop e da Campanha Reaja ou Será Mort@. O primeiro conta que os dois estavam andando em uma rua de Salvador quando foram abordados por policiais militares em uma viatura, que pediram para os jovens levantarem a camisa para ver se estavam armados.
Momentos depois do veículo partir, eles foram abordados por dois homens, armados e à paisana, que os obrigaram a se ajoelhar, colocar as mãos na cabeça e tirar os bonés. K.A. e C.S.S. tentaram explicar que não haviam feito nada, mas, em seguida, os homens começaram a atirar. "Não deu tempo para se defender, chegaram atirando, chegaram na maldade, foi um ato de covardia mesmo. Eles ainda disseram 'e agora, negão, cadê vocês?'", relata K.A.
Ele levou três tiros, mas caiu consciente. Quando uma viatura chegou para socorrê-los, os policiais afirmaram que tratava-se de um caso de guerra entre gangues rivais. A comunidade, no entanto, não deixou que K.A. fosse levado pela polícia. "Todo mundo sabe disso lá, eles dão socorro mas acabam matando no meio do caminho, dizendo que a gente revidou", diz.
A espingarda calibre 12, que foi usada contra K.A., foi levada pelos PMs que tentaram socorrê-lo. A arma, porém, desapareceu depois. C.S.S. não sobreviveu aos tiros. Já K.A. ficou com seqüelas e hoje caminha com dificuldades. "O que eles fizeram não vai ser pago, porque eu não sou mais o mesmo desde que aconteceu isso. Eu estou com alguns problemas, mas C.S.S. perdeu a vida dele”.
Além de nunca ter recebido qualquer assistência do governo, nem mesmo passe livre, ele passou a ser perseguido e a sofrer ameaças, por ser testemunha da atuação de grupos de extermínio em Salvador.

Tentativa de suborno
Dona E., que teve o filho de 13 anos morto pela polícia, recebeu, em agosto deste ano, uma visita inesperada quando chegava do trabalho. Na porta de sua casa estavam três viaturas, policiais armados e um delegado de polícia, sem mandado, a fim de intimidá-la. Dona E. relata que, sem qualquer razão, o delegado bateu em seu rosto e a ofendeu, na frente de sua família.
Ela também conta que, ao tentar registrar queixa na delegacia onde atuava o delegado, os policiais avisaram que não iria adiantar. No entanto, o procedimento foi realizado, apenas com informações do delegado, que alegou que Dona E. havia tentado agredi-lo.
Para piorar, ela ainda denuncia uma tentativa de suborno. "O delegado tentou me convencer que aquilo não iria dar em nada e depois tirou cem reais e me deu. Eu disse que não iria aceitar, porque aquilo não iria pagar a humilhação que eu sofri e as pancadas que ele me deu", afirma.
Depois de recusar o dinheiro, ela recebeu um “alerta” do delegado: "E disse que me mataria, que mataria meus outros filhos, mataria minha mãe e toda a minha família". Por causa das ameaças, Dona E. não dorme mais direito à noite, com medo que a polícia invada sua casa.
Em seu depoimento no Tribunal, ela pediu providências para as arbitrariedades das forças se segurança. "Eles são acostumados a fazer isso, não falo só por mim, que já sofri minha violência. Um jovem é morto do nada e acaba sendo enterrado como marginal, e a maioria nem marginal é. Eles chegam matando e não querem saber", conclui.

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