segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O genocídio continua em Salvador


Policiais mataram 77 pessoas em Salvador e RMS de janeiro a junho




Sempre motivo de polêmica, os autos de resistência inflam ainda mais as estatísticas de homicídios. Secretário de Segurança promete maior transparência de dados





Ex-recruta da Marinha, Levi foi morto por policiais


Juan Torres e Victor Uchôa

mailto:juan.torres@redebahia.com.br



Cajazeiras XI, janeiro deste ano: um ex-recruta da Marinha é baleado e morre. Lauro de Freitas, fevereiro: dez pessoas morrem num tiroteio em uma chácara. Sussuarana, março: um suspeito de envolvimento com o tráfico de drogas é morto durante tiroteio. Pero Vaz, março de 2010: sete jovens perdem a vida em meio a balas. O que esses casos têm em comum? Não foram registrados como homicídios. São autos de resistência (AR), que se configuram quando policiais alegam que suspeitos resistiram a abordagens para justificar o uso da força e, muitas vezes, do fogo. De janeiro a junho deste ano, 77 pessoas foram mortas assim em Salvador e Região Metropolitana (RMS). Somando os registros do interior, chega-se a 123 mortes em seis meses na Bahia, três a menos do que no mesmo período do ano passado. A curva das mortes em autos de resistência na RMS é crescente. Em 2007, foram 17 casos, pulando para 33 e 44 nos anos seguintes, e chegando a 51 em 2010. Somente no primeiro semestre de 2011, ocorreram 32 óbitos.

Dez pessoas foram mortas durante operação policial em Lauro de Freitas, em fevereiro deste ano...

Em Salvador, a tendência muda. Enquanto foram registradas 74 mortes em 2007, 148 em 2008 e o pico de 245 em 2009, no ano passado foram 136. Os dados, repassados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), passaram pela última atualização no dia 7 de julho.



Violência



Saindo das estatísticas para os fatos, é prerrogativa do policial se defender quando for atacado. No entanto, investigações comprovam que, em alguns casos, aquilo que foi registrado como auto de resistência não passou de execução. É aí que mora o problema.



“O auto de resistência é um instrumento para justificar a violência policial. O Brasil não tem pena de morte. O policial tem que prender e a Justiça decide o que fazer”, dispara o deputado estadual Yulo Oiticica (PT), membro da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. “Em qualquer guerra, morrem soldados dos dois lados. Que confronto é esse que só um lado mata?”, continua o parlamentar.


O titular da SSP, Maurício Barbosa, garante que a polícia tem ordem de investigar as circunstâncias das mortes em AR com o mesmo rigor que apura qualquer outro crime contra a vida. Ele afirma ainda que a ordem geral é que os policiais evitem ao máximo o uso da força, mas, diz ele, às vezes não é possível. “O ideal seria não termos nenhuma morte em ações policiais. Mas eu também não posso desacreditar da palavra dos meus policiais cada vez que alguém morrer em confronto. O que temos que fazer é investigar e, se for constatado o excesso, punir”, explica.Barreiras. Mas nem sempre isso acontece. A promotora Kárita Conceição de Lima, integrante do Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial (Gacep) do Ministério Público estadual (MP), conta que, muitas vezes, só recebe o registro do AR com a versão da polícia e o laudo da perícia no local do crime. “Nós é que vamos atrás de mais informações, de testemunhas, para decidir entre a denúncia dos policiais ou o arquivamento do caso”, explica. A depender do laudo, o trabalho fica mais fácil. Vestígios de pólvora, locais de lesão e trajetória das balas são informações que ajudam os promotores a identificar se houve de fato um tiroteio ou uma execução. A diretora adjunta da organização não governamental de direitos humanos Justiça Global, Sandra Carvalho, explica, porém, que normalmente vários fatores dificultam as investigações de AR. “Em primeiro lugar, tem a ocultação da cena do crime, a retirada de projéteis, há muitas vezes intimidação de testemunhas e muitos casos de falso socorro - quando a vítima é levada para o hospital por mais que esteja morto”.Segundo Kárita Conceição, devido à demanda do Gacep, não seria possível contabilizar quantos casos de morte por AR viraram denúncias contra os policiais por homicídio.Para o deputado Yulo, outro problema do AR é que a prática tem o respaldo de boa parte da sociedade. “Tem gente que pensa: ‘É um bandido a menos’. É uma lógica completamente distorcida. Qualquer pessoa deve ter os direitos respeitados”, avalia.



Transparência



Ao que parece, o discurso do deputado está na mesma sintonia do secretário Maurício Barbosa. “Não comemoramos mortes, mesmo que seja em ação policial. Não quero policial se achando no direito de matar. Não é assim que funciona”, enfatiza.




A iniciativa da SSP de tornar os dados públicos e tentar aprender com eles é elogiada pelo sociólogo Renato Sérgio de Lima, secretário executivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Quando você incorpora a prestação de contas ao seu dia a dia, você para e pensa no que está fazendo. Uma boa polícia não tem por que temer a divulgação de suas informações”.






Casos na Justiça



Apesar das dificuldades, algumas investigações de autos de resistência passam por todas as etapas processuais e chegam à Justiça. Em janeiro deste ano, o ex-recruta da Marinha Levi Monteiro Reis, 22, participava de uma festa em Cajazeiras XI, quando policiais civis chegaram atirando. Uma bala atingiu o coração de Levi, que morreu a caminho do Hospital Eládio Lasserre. Jovens que estavam na festa contaram que o rapaz foi apresentado no hospital como não identificado. Os policiais civis Carlos Souza Filho, Valmir Oliveira Silva, Guilherme Almeida Cardoso, Alcir Cleber Costa Santos, Reinaldo Raimundo Santos e Roberto Luis Paiva Fonseca foram denunciados pelo Ministério Público e respondem em liberdade. Outro exemplo foi a operação de 4 de março de 2010 na Rua o Bambolê, que ficou conhecida como a Chacina do Pero Vaz. Naquele dia, 11 PMs da 37ª CIPM (Liberdade) e da Rotamo foram à área para, supostamente, apurar uma denúncia de que traficantes circulavam armados. Alegando que foram recebidos a tiros, os homens que deveriam proteger a população mataram sete pessoas na rua e correram para uma casa para se proteger. O inquérito da polícia concluiu que nenhum tiro partiu de dentro da residência, derrubando a alegada legítima defesa. Depois da ação, os policiais levaram quatro corpos para o Hospital Ernesto Simões. Outros três foram encontrados dias depois - num terreno baldio, no Subúrbio Ferroviário, e dois na Estrada das Cascalheiras, em Camaçari. O promotor do caso, Davi Gallo, disse que até o final de agosto encaminhará a ação penal para julgamento. Ele quer levar o grupo a júri popular e pedirá condenação por homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver. “A pena pode chegar a mais de 100 anos de prisão”.

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