Trecho do livro “Modernità e ambivalenza” [Modernidade e ambivalência] (Ed. Bollati Boringhieri), do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a ser publicado nos próximos dias na Itália. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 12-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A queda das “grandes narrações” (como Lyotard as define) – a dissolução da fé nos tribunais de apelação supraindustriais e supracomunitários – foi vista com temor por muitos observadores, como um convite a uma situação do tipo “tudo vai bem”, à permissividade universal e portanto, no fim, à renúncia a toda ordem moral e social. Lembrando-nos da máxima de Dostoiévski, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, e da identificação durkheimiana do comportamento associal com o enfraquecimento do consenso coletivo, chegamos a acreditar que, a menos que uma autoridade imponente e indiscutível – sagrada ou secular, política ou filosófica – esteja acima de todo indivíduo, o futuro nos reservará provavelmente anarquia e carnificina universal.
Essa crença sustentou eficazmente a moderna determinação de instaurar uma ordem artificial: um projeto que suspeitava de toda espontaneidade até que se provasse sua inocência; um projeto que colocava de lado tudo o que não estava explicitamente prescrito e identificava a ambivalência com o caos, com o “fim da civilização” assim como a conhecemos e podemos imaginá-la.
Talvez, o medo surja da consciência reprimida de que o projeto estava condenado desde o princípio. Talvez, havia sido cultivado deliberadamente desde o momento em que desenvolvia o útil papel de baluarte emotivo contra o dissenso. Talvez, era só um efeito colateral, um repensamento intelectual nascido da prática sócio-política da cruzada cultural e da assimilação forçada.
De um modo ou de outro, a modernidade decidida a demolir toda diferença não autorizada e todos os modelos de vida rebeldes só podia conceber o horror ao desvio e transformar o desvio em sinônimo de diversidade. Como comentaram Adorno e Horkheimer, a cicatriz intelectual e emotiva permanente deixada pelo projeto filosófico e pela prática política da modernidade foi o medo do vazio. E o vazio era a ausência de um padrão vinculante, inequívoco e aplicável em nível universal.
Do popular medo do vazio, da ansiedade nascida da ausência de instruções claras que não deixam nada à dilacerante necessidade da escolha, fomos informados pelos relatos preocupados dos intelectuais, intérpretes designados ou autodesignados da experiência social. Os narradores, porém, nunca ficaram ausentes da sua narração, e é uma tarefa desesperada a de tentar separar a sua presença das suas histórias. É possível que, em geral, houvesse uma vida fora da filosofia, e que essa vida não compartilhasse a preocupação dos narradores e que passasse bem, mesmo sem ser disciplinada por padrões de verdade, bondade e beleza provados racionalmente e aprovados filosoficamente.
É possível até que grande parte dessa vida fosse vivível, ordenada e moral justamente porque não era retocada, manipulada e corrompida pelos agentes autoproclamados da “necessidade universal”. Mas não há dúvida de que uma forma particular de vida não pode passar bem sem o sustento de padrões universalmente vinculantes e apoditicamente válidos: trata-se da forma de vida dos próprios narradores (mais precisamente, a forma de vida que contém as histórias narradas por grande parte da história moderna).
Foi principalmente aquela forma de vida que perdeu o seu fundamento, uma vez que os poderes sociais abandonaram as suas ambições ecumênicas, e que se sentiu ameaçada mais do que qualquer outra pela dissolução das expectativas universalistas. Enquanto os poderes modernos se agarraram resolutamente à intenção de construir uma ordem mais eficaz, guiada pela razão e, portanto, definitivamente universal, os intelectuais não tiveram grandes dificuldades para articular a sua reivindicação de um papel crucial no processo: a universalidade era o seu domínio e o seu campo de especialização.
Enquanto os poderes modernos insistiram na eliminação da ambivalência como medida do melhoramento social, os intelectuais puderam considerar o seu trabalho – a promoção de uma racionalidade universalmente válida – como veículo principal e talvez arrastante do progresso.
Enquanto os poderes modernos continuaram denegrindo, colocando de lado e expulsando o Outro, o diferente, o ambivalente, os intelectuais puderam contar com um massivo apoio à sua autoridade de julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, o conhecimento da mera opinião. Assim como o protagonista adolescente do Orfeu de Jean Cocteau, convicto de que o sol não surgia sem a serenata da sua cítara, os intelectuais se convenceram que a moral, a vida civil e a ordem social dependiam da sua solução do problema da universalidade: da sua capacidade de fornecer a prova decisiva e definitiva do fato de que o “dever” humano é inequívoco e que a sua inequivocabilidade tem fundamentos indestrutíveis e totalmente confiáveis.
Essa convicção se traduziu em duas crenças complementares: que não haveria nada de bom no mundo, a menos que fosse provada a sua necessidade; e que provar essa necessidade, se e quando fosse possível, teria um efeito sobre o mundo semelhante ao atribuído aos atos legislativos de um governante: substituiria o caos pela ordem e tornaria transparente o que era opaco.
O efeito mais espetacular e duradouro da última batalha da verdade absoluta não foi tanto a sua inconclusão, derivante como diriam alguns dos erros de projeto, mas a sua total irrelevância ao destino mundo de verdade e bondade. Esse destino foi decidido muito longe das escrivaninhas dos filósofos, lá embaixo no mundo da vida cotidiano onde se enfureciam as lutas pela liberdade política e onde se empurravam para frente e para trás os limites da ambição estatal de legislar sobre a ordem social, de definir, segregar, organizar, constranger e reprimir.
Essa crença sustentou eficazmente a moderna determinação de instaurar uma ordem artificial: um projeto que suspeitava de toda espontaneidade até que se provasse sua inocência; um projeto que colocava de lado tudo o que não estava explicitamente prescrito e identificava a ambivalência com o caos, com o “fim da civilização” assim como a conhecemos e podemos imaginá-la.
Talvez, o medo surja da consciência reprimida de que o projeto estava condenado desde o princípio. Talvez, havia sido cultivado deliberadamente desde o momento em que desenvolvia o útil papel de baluarte emotivo contra o dissenso. Talvez, era só um efeito colateral, um repensamento intelectual nascido da prática sócio-política da cruzada cultural e da assimilação forçada.
De um modo ou de outro, a modernidade decidida a demolir toda diferença não autorizada e todos os modelos de vida rebeldes só podia conceber o horror ao desvio e transformar o desvio em sinônimo de diversidade. Como comentaram Adorno e Horkheimer, a cicatriz intelectual e emotiva permanente deixada pelo projeto filosófico e pela prática política da modernidade foi o medo do vazio. E o vazio era a ausência de um padrão vinculante, inequívoco e aplicável em nível universal.
Do popular medo do vazio, da ansiedade nascida da ausência de instruções claras que não deixam nada à dilacerante necessidade da escolha, fomos informados pelos relatos preocupados dos intelectuais, intérpretes designados ou autodesignados da experiência social. Os narradores, porém, nunca ficaram ausentes da sua narração, e é uma tarefa desesperada a de tentar separar a sua presença das suas histórias. É possível que, em geral, houvesse uma vida fora da filosofia, e que essa vida não compartilhasse a preocupação dos narradores e que passasse bem, mesmo sem ser disciplinada por padrões de verdade, bondade e beleza provados racionalmente e aprovados filosoficamente.
É possível até que grande parte dessa vida fosse vivível, ordenada e moral justamente porque não era retocada, manipulada e corrompida pelos agentes autoproclamados da “necessidade universal”. Mas não há dúvida de que uma forma particular de vida não pode passar bem sem o sustento de padrões universalmente vinculantes e apoditicamente válidos: trata-se da forma de vida dos próprios narradores (mais precisamente, a forma de vida que contém as histórias narradas por grande parte da história moderna).
Foi principalmente aquela forma de vida que perdeu o seu fundamento, uma vez que os poderes sociais abandonaram as suas ambições ecumênicas, e que se sentiu ameaçada mais do que qualquer outra pela dissolução das expectativas universalistas. Enquanto os poderes modernos se agarraram resolutamente à intenção de construir uma ordem mais eficaz, guiada pela razão e, portanto, definitivamente universal, os intelectuais não tiveram grandes dificuldades para articular a sua reivindicação de um papel crucial no processo: a universalidade era o seu domínio e o seu campo de especialização.
Enquanto os poderes modernos insistiram na eliminação da ambivalência como medida do melhoramento social, os intelectuais puderam considerar o seu trabalho – a promoção de uma racionalidade universalmente válida – como veículo principal e talvez arrastante do progresso.
Enquanto os poderes modernos continuaram denegrindo, colocando de lado e expulsando o Outro, o diferente, o ambivalente, os intelectuais puderam contar com um massivo apoio à sua autoridade de julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, o conhecimento da mera opinião. Assim como o protagonista adolescente do Orfeu de Jean Cocteau, convicto de que o sol não surgia sem a serenata da sua cítara, os intelectuais se convenceram que a moral, a vida civil e a ordem social dependiam da sua solução do problema da universalidade: da sua capacidade de fornecer a prova decisiva e definitiva do fato de que o “dever” humano é inequívoco e que a sua inequivocabilidade tem fundamentos indestrutíveis e totalmente confiáveis.
Essa convicção se traduziu em duas crenças complementares: que não haveria nada de bom no mundo, a menos que fosse provada a sua necessidade; e que provar essa necessidade, se e quando fosse possível, teria um efeito sobre o mundo semelhante ao atribuído aos atos legislativos de um governante: substituiria o caos pela ordem e tornaria transparente o que era opaco.
O efeito mais espetacular e duradouro da última batalha da verdade absoluta não foi tanto a sua inconclusão, derivante como diriam alguns dos erros de projeto, mas a sua total irrelevância ao destino mundo de verdade e bondade. Esse destino foi decidido muito longe das escrivaninhas dos filósofos, lá embaixo no mundo da vida cotidiano onde se enfureciam as lutas pela liberdade política e onde se empurravam para frente e para trás os limites da ambição estatal de legislar sobre a ordem social, de definir, segregar, organizar, constranger e reprimir.
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