“Uma relação neocolonial só se estabelece se colonizador e colonizado estão de acordo.”
A frase é de Marco Aurélio Garcia, assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, respondendo a uma entrevista publicada hoje na Folha de S. Paulo (para assinantes), sobre as acusações que pairam sobre a China de tentar estabelecer uma relação neocolonial com a África e a América Latina.
Particularmente, prefiro outro neologismo, algo como “neo-neocolonialismo”, para separar este novo fenômeno dos processos de dominação que culminaram nas guerras coloniais no século 20. Agora, o “colonialismo” ocorre com a manutenção da soberania do colonizado. E normalmente com a anuência e colaboração dos Estados receptores de investimento.
Mas essa “anuência” (texto cheio de aspas, não?) não é tão simples como aparece na fala de Garcia. Peguemos o exemplo de muitos países na África. A anuência raras vezes parte da população e sim de um governo (ilegítimo) controlado por uma elite corrupta fruto de um processo de dominação interno que sufoca a democracia.
A cumplicidade da elite local, uma vez que não há invasão direta de soberania, como antes, é necessária. O próprio povo pode ser fisgado pelas promessas presentes no discurso da elite local e do investidor estrangeiro, que nunca vai dizer de verdade todas as consequência negativas. Do tipo, vocês não terão terra para plantar a comida de vocês no futuro, mas nós geraremos alguns empregos.
Em outras vezes, a anuência é forçada, por necessidade. Um país sem muitos recursos naturais, vê na possibilidade de empresas de outro país comprar suas terras como tábua de salvação. Governos aceitam sob a ameaça de “ou eu fecho com vocês ou com seu vizinho”. Em um lugar desesperado por investimentos, se o único que se oferece passa pela desapropriação, ele é aceito.
Há uma corrida por terras hoje no mundo, em um processo de reforma-agrária às avessas. Uma corrente internacional que defende que empresas estrangeiras não comprem as terras, mas sim façam investimentos na estrutura de produção da agricultura familiar em países pobres e comprem a produção com antecedência ao invés de adquirir terras. OK, mas isso não é a solução final também, uma vez que a dependência gerada nessa relação pode ser tão complicada quanto. Vemos no Brasil, a situação dos “integrados” na região Sul do país, que produzem aves e suínos para a indústria e que, muitas vezes, acabam sendo tratados não como fornecedores mas como funcionários delas, sem os direitos trabalhistas.
Pela lógica simplista da fala de Garcia, o explorado é tão culpado quanto o explorador pela sua desgraça – mesmo nos casos em que este tenha mais poder e recursos econômicos para fazer valer sua vontade. No extremo, isso me lembra a declaração dosenador Demóstenes Torres que praticamente culpou os negros pela escravidão.
Que a China tem interesses nas commodities e demais recursos naturais da África e América do Sul e que vai fazer o necessário para ter acesso a eles, poucos duvidam. Que Marco Aurélio não pode xingar o gigante asiático porque está em um cargo delicado, entende-se também. Mas poderia ter pensado duas vezes antes de falar ou ter explicado, melhor essa frase. O Brasil pode desenvolver instrumentos para se defender (como a proibição de compra de terra por estrangeiros). Mas e no caso de países sem tantas opções, como os africanos?
Se ele acha, realmente, que só a vontade de um povo é necessária para barrar uma relação neocolonial, deveria escrever livros de auto-ajuda para nações pobres da África, que sofreram com a exploração histórica pelo Ocidente e para os que sofrem desse neo-neocolonialismo, imposto por países como a China (e mesmo o Brasil).
Representantes de 123 países e 11 agências das Nações Unidas, além de membros de ONGs e da sociedade civil, acordaram, no ano passado, em lançar um pacote de diretrizes para guiar governos, empresas e outras organizações a respeito de como lidar com a questão da propriedade da terra. As chamadas Diretrizes Voluntárias para a Governança Responsável da Terra e outros Recursos Naturais deverão ainda ser concluídas e aprovadas antes de sua conclusão, prevista para 2011, e vão conter orientações sobre temas como direitos tradicionais, combate a uma corrida por terra e à especulação fundiária, modelos agrícolas, e promoção de desenvolvimento agrícola social e ambientalmente sustentável.
No Brasil, a discussão sobre a aquisição de terras por estrangeiros ganhou corpo devido ao interesse de empresas estrangeiras, principalmente chinesas, em produzir matéria-prima para etanol e biodiesel ou mesmo alimentos. Em agosto de 2010, o governo federal limitou em 50 módulos fiscais (que podem ir até 5500 hectares, dependendo da região) o limite de compra de terra por estrangeiros, que também não poderão adquirir mais de 25% da área de um município.
Enquanto algumas organizações e importantes países doadores pensam em promover uma rápida “Revolução Verde” na África, inundando-a de sementes geneticamente modificadas e fertilizantes, procurando aumentar a produtividade por meio de uma agricultura de grande escala, outros países e organizações, especialmente as organizações de pequenos produtores, como a Via Campesina, defendem um modelo baseado na agricultura familiar. Outros defendem também uma abordagem sistêmica da fome, incluindo não só a produção, mas o acesso e a diversidade nutricional, valorizando sobretudo o direito humano à alimentação.
Por fim, não é questão de ser nacionalista, nunca fui. A exploração dos trabalhadores não conhece fronteiras e, portanto, a luta pela sua dignidade também não pode conhecer. Mas a disputa pelo controle da produção de alimentos e commodities no mundo vai assumir outro patamar em breve. Ares de guerra por terras aparecem no horizonte e não vai ser algo bonito de se ver.
PS: Posso, em tese, ser acusado de reacionário e niilista, que defende o “status quo” pobre na África sem oferecer alternativa e condenando toda forma de desenvolvimento capitalista com base na demanda chinesa como algo necessariamente negativo. Faz parte do jogo ser xingado… Mas soluções estão aí, por exemplo, os movimentos sociais que atuam junto à FAO, organismo da ONU que trata da alimentação e da agricultura, lembram sempre o direito do acesso à terra e do apoio ao desenvolvimento das comunidades tradicionais e da agricultura familiar como alternativas. Prefiro, por isso, ser taxado de utópico, não de conservador._
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